Liberar a carga somente com digitais, já é mesmo possível?

No dia 24 de março deste ano a Receita Federal (RFB) colocou fogo no parquinho do Comércio Exterior brasileiro ao se manifestar sobre liberar carga somente com digitais dos originais, mais precisamente o conhecimento de embarque, o que cito resumidamente abaixo:

“A via original do conhecimento de carga que for digitalizada conforme Decreto n° 10.278 18/03/2020, terá os mesmos efeitos legais do documento original, sendo que a sua apresentação em meio digital ao recinto alfandegado considerar-se-á como atendida a previsão contida no inciso IV, do artigo 54, da IN SRF n° 680, 02/10/2006.” – Importação 017/2020

Pareceu uma boa notícia em meio ao turbilhão de problemas que estamos enfrentando atualmente: menos trânsito de papel não só é necessário agora, como representa redução de custos ao diminuir o tempo perdido levando papéis para passear.

Entretanto, não é bem assim.

Não à toa que somente agora escrevo sobre o assunto, foi preciso analisar com critério o conteúdo e o que outros especialistas têm a dizer sobre. Então vamos lá.

Sim, queremos liberar carga somente com digitais

Já levei muito envelope pardo na RFB, entreguei L.I em órgãos anuentes e liberei carregamento no “Comex” de diversos portos, aeroportos e portos secos alfandegados.

O tempo que perdia de deslocamento e fila nessas funções, ao invés de estar realizando trabalhos que me desenvolvessem profissionalmente, fez de mim um natural e grande apoiador da digitalização.

As evoluções devem ser realizadas com responsabilidade, mas é inegável que qualquer mudança, por mais planejada que seja, causa transtorno. Foi assim com:

  • Siscomex
  • Sistema Mercante;
  • Portal Único;
  • DU-E; e até no privado, com a
  • Migração das contas do HSBC para o Bradesco.

Ative seu lado Advogado

O assunto é delicado e certamente capaz de gerar mais de uma interpretação, é preciso primeiramente que os profissionais do comex ativem o lado advogado para compreendermos os problemas legais e comerciais que uma interpretação leviana pode causar.

E podem desativar os demais: Financeiro, Contador, Administrador, Psicólogo….

A RFB está legislando e onde não devia

“O primeiro aspecto que merece atenção é a falta de legitimidade e competência da COANA para legislar. Ao utilizar o verbo “esclarecer”, a Notícia em análise faz crer que há dúvida sobre a questão no âmbito de aplicação do Siscomex ou em relação Público-Particular, o que seria objeto de “esclarecimento”, mas não é o caso. A Notícia não “esclarece”, mas sim pretende alterar texto expresso de Lei”.

Conforme delibera acima Fábio Gentil, a notícia teve a pretensão de legislar, e aliás num assunto que não lhe compete, como explica Samir Keed.

“A única coisa que a RFB pode fazer é restringir-se à sua competência, que é quanto ao Siscomex, em que pode permitir que o despacho seja instruído com cópia digitalizada do conhecimento de embarque, e nada além disso.”

O Decreto 10.278 18/03/2020 não permite utilizar o BL de forma digital

Ainda que a RFB pudesse legislar sobre, a própria IN acima citada joga um balde de água fria nos foguetes que seriam utilizados na comemoração.

O parágrafo único do Art. 2º diz que o Decreto não se aplica a:

  • II – documentos referentes às operações e transações realizadas no sistema financeiro nacional;
  • V – documentos de identificação.

São duas situações em que se enquadra o conhecimento de embarque, porque  para fechamentos de câmbio e imprescindível quando a operação possui Carta de Crédito (L/C).

Além de identificar a carga e ser um título de crédito representativo, podendo ter sua posse transferida por endosso, mesmo durante a viagem.

Mesmo que esses dois incisos não existissem, o Art. 4º diz que a digitalização deve assegurar qualidades como:

  • Integridade;
  • confiabilidade;
  • rastreabilidade; e
  • auditabilidade de procedimentos.

Virtudes que uma mera foto ou pdf não vão atender!

Isso é perigoso comercialmente e para o risco Brasil

Se existem recintos alfandegados se embasando nessa notícia para entregar mercadorias importadas, vimos até aqui o quão questionáveis são.

E não se trata apenas dos problemas legais que virão a ter, é comercialmente arriscado para agentes de carga, NVOCC e Armadores, em razão do costume destes de intermediarem a entrega do BL como forma de garantir o pagamento ao exportador. O que no meu entendimento não deveria ser responsabilidade deles, nós os contratamos para cuidar da logística internacional e cabe aos depositários a responsabilidade da entrega da carga mediante apresentação do BL.

Contudo, se estes aceitarem apenas o digital, veremos problemas como:

Se um exportador envia o BL original por e-mail, para exigir pagamento após embarque, o importador conseguirá com este mesmo documento digitalizado retirar a mercadoria.

E o exportador? Poderá ficar com o BL e sem seu pagamento.

Consequentemente, dirá que o agente de carga traiu sua confiança, o risco Brasil (de vender para nós) cresce, e menores as chances de conseguirmos comprar com pagamento pós embarque, o que é péssimo para o fluxo de caixa da importação.

E de onde virá a solução?

Tal como um “canal melancia” nos ilude, entendo que ainda não temos a legislação necessária para liberar a carga de maneira segura, somente com documentos digitais.

Entretanto, eu e outros colegas da área entendemos que a solução mais próxima do Ato Declaratório Interpretativo nº 2, de 31/03/2020 é emiti-lo e assiná-lo pelo agente de carga no Brasil (após receber autorização do exportador). Tomara que seja viável e funcione sem causar prejuízos.

Principalmente para os agentes de carga não precisarem mais intermediar negociações entre Exportador e Importador, pois os riscos são deles e devem ser limitados a uma conversa baseada em INCOTERMS

Por exemplo, numa importação FOB, é justo o agente de carga, contratado pelo Importador, precisar do ok do Exportador para entregar o BL?

Além de economizar o tempo de viagem do documento (e o dinheiro gasto com courier), quem nunca sofreu de ansiedade e azia torcendo para os originais chegarem antes da carga.

➡️ Leia mais: Carga consolidada: como funciona na prática?